MANUEL FERREIRA DA CÂMARA DE BETHENCOURT AGUIAR E SÁ

- INTENDENTE CÂMARA

PATRONO DA CADEIRA NÚMERO 50

 

Por José Renato de Castro Cesar

A vida do Intendente Câmara (1764-1835) inspira uma apaixonada e aventurosa estória, no melhor estilo romanesco. Este nobre, valente e simpático “patrono da
siderurgia brasileira” viveu no auge do Iluminismo. Foi um herói que deu provas de amor pelo Brasil e por suas raízes portuguesas. Súdito dileto de D. João VI e de D. Pedro I, recebeu as mais altas condecorações nacionais por sua dedicação a Portugal, Brasil e Algarves: as comendas da Ordem de Cristo e da Ordem imperial do Cruzeiro do Sul. Mas não recebeu títulos nobiliárquicos. Injustiça que a História nunca comentou.

Foi um cientista que enobreceu o Brasil. Nasceu em Itacambira, Minas Gerais, em 1764, quando seus pais iam para a Bahia, pois ali sua família possuía terras e engenhos de açúcar. Possuíam, também minas de ouro em Caeté. Ele e seu irmão mais velho, José de Sá Bethencourt e Accioli, estudaram Leis em Coimbra

Em Coimbra, Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrada tornam-se colegas e amigos. Formaram-se em 1788. Joaquim Pedro Fragoso juntou-se a eles e os três varreram a Europa aprendendo sobre mineração, altos-fornos, energia e agrosilvicultura, patrocinados pela Coroa Portuguesa. Estudaram geologia, mineralogia, química, economia montanística, botânica e outras ciências correlatas. Câmara era o líder do grupo. Conheceram a França, Hanover, Saxônia, Inglaterra, Boêmia, Veneza, Banato (Romênia, Sérvia e Hungria), a Suécia e a Noruega. Para a Transilvânia, Câmara viajou sozinho.

As cartas de Dom Rodrigo de Souza Coutinho (1), ministro português, e de D. João VI a Ferreira da Câmara dão mostras da confiança que a Corte Portuguesa depositava nele e na sua competência como cientista e homem público. Dom Rodrigo foi seu tutor, mentor e amigo por toda a vida. Nestas mesmas cartas (2) se comprova a visão lúcida do príncipe-regente D. João VI, que muitos, infelizmente, aqui e lá, ainda vêem como alienado e medroso.

Ferreira da Câmara faleceu em 1835, na Bahia, depois de se aposentar. Foi Desembargador, Deputado e Senador.Contribuiu para o aperfeiçoamento da Constituição de 1824 e para a modernização das leis minerárias. Reescreveu e modernizou o “Livro da Capa Verde”, o controverso “Alvará do Regimento Diamantino” editado pelo Marquês de Pombal em 1771. Com sua contribuição e seus estudos fez-se novo Alvará, mais moderno e mais “humano”, o de 1803.

Foi o primeiro brasileiro a ser “Intendente das Minas Gerais e do Distrito Diamantino”. Fundiu o ferro gusa nos altos-fornos que construiu em Morro do Pilar, em 1814, cujas ruínas já não testemunham quase nada. Um projeto único: misto do alto-forno catalão com o sueco. Pois os altos-fornos suecos, daquela época, eram mais potentes e com maior capacidade. Os portugueses utilizavam o alto-forno catalão. Câmara projetou algo grande e diferente. Inovador.

Eschwege muito o criticou por isso, pois defendia os altos-fornos saxões. Menores e mais fáceis de operar, com menos operários, menos carvão e trabalho menor. A polêmica entre estes dois grandes metalúrgicos perdura até hoje. E as pesquisas históricas confirmam as desavenças, com muitos partidários e ativistas.

Ferreira da Câmara estudou química e botânica com Domenico Vandelli e física com Adriano Balbi. Foi contemporâneo de Kant, Hegel, Göethe, Tomaz Gonzaga (diplomado em Coimbra em 1768) e Cláudio Manoel da Costa, Tiradentes, Benjamim Franklin, Thomas Jefferson, Jeremy Bentham, Adam Smith, Hugh Blair, dos irmãos von Humboldt, de Spix e Martius, de Saint-Hilaire, John Mawe (comprador de diamantes da Coroa Inglesa), e de outros “gênios”.

Numa época em que o Ancien Régime exigia fidelidade ao patronage dos reis, Câmara era fiel vassalo da Casa de Bragança.

Estudou mineralogia e metalurgia na École de Mins de Paris, com Fourcroy e Duhamel e, em Freiberg, Alemanha, se fez discípulo de Abrahan G. Werner. Sua vida pública é marcada pela práxis “marxiana”. Compreendia a industrialização e o capitalismo como forma de superação da pobreza e da miséria. E era um homem liberal.

Seus altos estudos para um novo “Código de Minas” priorizavam as florestas e a agricultura, as nascentes e as outorgas de água e o “direito de regalia” dos mineradores. Sendo que todos estes estudos foram baseados em conselhos e sugestões de D. João VI e do Conde de Linhares, que era um especialista em economia minerária.

Câmara teve rusgas por toda a vida com José Vieira Couto, diamantinense e, também, ex-aluno de Coimbra, cujos estudos minero-metalúrgicos ruins não foram recomendados pelo Intendente. Também esta polêmica permeou o tempo, vindo até os dias atuais, servindo como tese e dissertação de alguns historiadores locais.

O maior biógrafo de Ferreira da Câmara foi Marcos Carneiro de Mendonça que dizia que o Intendente, em toda sua vida proba “criou um vigoroso núcleo de brasilidade em Minas e no Brasil” (sic), superintendendo e dirigindo os negócios da Coroa Portuguesa.

Infelizmente, na História de Minas Gerais, o Intendente Câmara vem sendo injustiçado. As obras de Felício dos Santos (1924), de Pandiá Calógeras (1905) e de Junia Ferreira Furtado (1994) contêm incongruências que podem causar equívocos. Sendo, portanto, recomendável o trabalho hercúleo e insuperável de Carneiro de Mendonça (1958), que recolheu uma enormidade de dados sobre o Intendente e nos deixou memorável biografia. Também são recomendados os trabalhos de: J. F. Sigaud (IHGB, 1842); A. G Varela (MAST, 2007); O. H. Leonardos (1962); V. Leinz (1963); Manuel Serrano Pinto (1994) e Silvia F. de M. Figueirôa (1999).

A vida do Intendente na Europa e entre a Bahia Minas e Rio é pura aventura. Viagens e muito trabalho. Desde menino Viajava pelos “caminhos” das Minas. Nasceu no “Caminho da Bahia”, o mitológico “descaminho do ouro”, cujo tráfego esteve proibido pela Coroa. Seus estudos sobre a Comarca de Ilhéus (BA) recomendavam melhorias no plantio de cacau; a diversificação agrícola; o cuidado com as florestas, destruídas já pelo consumo de lenha; e diversas melhorias na pesca.

Era um hábil cavaleiro. Era homem de letras e de armas. Viril, transitava ligeiro e bem armado pela “Estrada Real”. Foi ele quem abriu a estrada de Diamantina a Morro do Pilar e sua intenção era levar o ferro ali fundido até o Rio Doce, para daí levá-lo ao Rio e à Bahia. Era um homem de visão industrial. Lutou contra os botocudos.

Ferreira da Câmara não brincava em serviço. Nunca deu motivos a seus desafetos, nem tampouco a seus superiores, de questionarem sua autoridade. Foi homem temido e respeitado pelos maiorais do seu tempo. Ao mesmo tempo foi um sujeito humano e justo. Ponderado e nobre. Suas cartas, trabalhos científicos e pareceres técnicos denodam o seu alto nível cultural, humanitário, público e patriótico. Um verdadeiro herói, pelos benefícios que fez ao Brasil.

Trabalhou para melhorar as leis e os trabalhos minero-metarlúgicos e agrosilvopecuários que tanto interessavam a D. João VI. Introduziu novas técnicas e tecnologias e melhorias no cultivo de mandioca, milho, feijão e cana. Trouxe, de outros países, gramíneas de vários tipos para pastagens. Em toda estrada que abria ou reformava cultivava milho, mandioca e feijão nas laterais das estradas. E plantava o capim “meloso” (Melinis minutiflora) para os animais. Introduziu na Bahia: a teca – madeira nobre para a construção naval; a pimenta; a canela; a fruta pão; e o cânhamo dentre outras plantas.

Ferreira da Câmara era um gênio. Sabia montar e utilizar um laboratório de ciência dos materiais e os métodos classificatórios de Lineu e de Wallerius. Era sócio das Academias de Ciências de Lisboa, de Edimburgo, de Estocolmo e da Academia da Indústria do Rio de Janeiro. Um homem de personalidade. Atlético, frugal e elegante. E, ao mesmo tempo, selvagem e indômito. Senão, não assumiria as tarefas que lhe foram confiadas e nem tampouco Dom Rodrigo o teria recomendado a D. João VI para fazer o que tinha que ser feito na Europa e no Brasil, tendo-se em vista os interesses bélicos de França contrários à Casa de Bragança. Foi aqui que Napoleão perdeu pra nós.

Ferreira da Câmara estudou e viajou muito. Abriu caminhos, alargou estradas, construiu pontes, conservou florestas. Preservou nascentes. Descobriu salitre, ferro, manganês, ouro e fiscalizou as catas diamantíferas com justiça e probidade. Plantou roças, criou porcos, patos, galinhas, bois, vacas e cavalos. Fez açúcar e cachaça. Conheceu de tudo um pouco e enfrentou os traidores da Pátria.

Amou o Brasil. Morreu feliz e falido, por cuidar das cousas públicas. Só não recebeu seu título de conde devido às influências insanas que seus desafetos afrancesados, contrários a Dom Rodrigo, tanto exerceram sobre D. Pedro I. Se alguém deu idéia pra D. João VI vir para o Brasil, enganando Napoleão, este foi Manuel Ferreira da Câmara. Um “mineiro” católico que amou a Deus sobre todas as coisas e que fez de sua vocação implantar no Brasil a Revolução Industrial. Viva a memória do Intendente Câmara! Verdadeiro herói brasileiro!

 


1. 1º Conde de Linhares, D. Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho Teixeira de Andrade Barbosa (1745-1812) substituiu Martinho de Melo e Castro no Ministério da Marinha e foi Ministro da Guerra de D. João VI, falecendo no Rio de Janeiro.

2. Minas Gerais e a História Natural das Colônias. Org. Oswaldo Munteal Filho e Mariana Ferreira de Melo. Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2005.