CÔNEGO RAIMUNDO OTÁVIO DA TRINDADE

PATRONO DA CADEIRA NÚMERO 54

Por Geraldo Barroso de Carvalho

O Cônego Raimundo Otávio da Trindade nasceu num pequeno povoado da freguesia de Furquim, município de Mariana, no dia 20 de novembro de 1883. Foi batizado a 8 de dezembro de 1883, em Barra Longa, onde tinha suas raízes. Seu curso primário foi feito na Escola Mista de Rio Doce. Em seguida, ele frequentou o Externato São José, de Barra Longa, e matriculou-se no Seminário de Mariana no dia 27 de setembro de 1899. Recebeu sua tonsura em 1905 e ordenou- se no dia 4 de abril de 1908, pelas mãos de Dom Silvério Gomes Pimenta. Foi vigário de Rio Doce, de São Domingos do Prata e, a partir de 1915, de Barra Longa.

Jovem inteligente, metódico e muito estudioso, o Cônego Trindade, desde cedo, despertava a atenção, com seus estudos. Ele mergulhou fundo nas prateleiras de velhas bibliotecas, nos arquivos de igrejas e museus, e, especialmente nos arquivos da Cúria Metropolitana de Mariana, cuja papelada, amarelada pelo tempo e embolorada pelo desuso, estava a pedir que alguém, de fina sensibilidade e ávido se saber, dela tirasse o bolor e o transformasse em ouro. Foi o que fez, esse alquimista da História Mineira, tomando-se um dos maiores historiadores destas Minas Gerais, que escrevera a história da arquidiocese de Mariana, cujos primórdios se confundem com o próprio nascimento da história mineira. Ao mesmo tempo, os alicerces desta história têm, na arquidiocese de Mariana, um de seus pilares mais sólidos.

É intrigante como, tendo saído da mesma área, nascido no mesmo lugar, figuras tão diversas tenham produzido obras tão importantes, partindo de pontos tão diferentes. Refiro-me a três grandes historiadores de Minas: o desditoso inconfidente Cláudio Manuel da Costa. Diogo de Vasconcelos e o Cônego Raimundo Trindade, todos eles marianenses. O primeiro, com seu Fundamento Histórico, veio a se tornar o primeiro historiador mineiro, revelando fatos ocorridos pouco antes, baseado em dados e informações da época, aos quais tinha acesso fácil, na sua condição de secretário do governador. Diogo de Vasconcelos, graças à sua prodigiosa memória, aos fundamentos da tradição oral e a alguma pesquisa, tornou-se, com a História Antiga de Minas Gerais e, posteriormente, com a História Média de Minas Gerais, um dos pilares básicos da historiografia mineira.

Diferentemente de seus antecessores, o Cônego Trindade utilizou, como ninguém, o método científico. Nas cansativas e difíceis pesquisas, em arquivos desorganizados, mas munido de uma obstinação incomum, de grande cultura, do faro do historiador e, principalmente, de um dom invulgar para escrever bem, brindou-nos com algumas das obras mais importantes da ciência e da literatura historiográfica mineira.

Jovem ainda, ele iniciou sua carreira de escritor, genealogista e historiador, com Semana Santa (1916), seguindo-se Monografia de Barra Longa, em 1917, e Efemérides da Arquidiocese de Mariana, em 1928.
No mesmo ano, inicia a publicação de sua obra magna, em três volumes: Arquidiocese de Mariana. A essa, segue-se uma sucessão de obras: A Família Pontes (1934), Andradas e Biografia de Dom Silvério (1940),
Garcias Velhos, Campos, etc (1942), Troncos Paulistanos e Martins da Costa e Genealogia da Zona do Carmo (1943), Titulares de Igrejas e Patronos de Lugares e Ascendentes e Colaterais de Tiradentes (1944),
Criação do Bispado de Mariana, Breve Notícia dos Seminários de Mariana e São Francisco de Assis de Ouro Preto (1951), Um Pleito Tristemente Célebre nas Minas do Século XVIII (1957) e Velhos Troncos Mineiros, A Igreja de São José de Ouro Preto, A Igreja das Mercês de Ouro Preto e Cômputo Eclesiástico, de publicação póstuma.

É preciso que se diga uma palavra especial, sobre Arquidiocese de Mariana, a maior das obras do Cônego Trindade, que, projetada desde 1926 e vinda à luz, em sua primeira edição, em 1928, foi admirada por figuras expressivas, como Pandiá Calógeras, o mais mineiro dos fluminenses, pelo Conde Afonso Celso, por Rocha Pombo, por João Camilo de Oliveira Torres e por outros historiadores. Nesta obra gigante, Cônego Trindade alia, à sua extraordinária habilidade de escritor, a perícia do historiador criterioso, valorizando as minúcias e delas tirando conclusões e mostrando a grandeza do todo. É difícil entender como pôde produzir páginas de história tão bem garimpadas dos arquivos, registrando, desde os simples dados burocráticos do cotidiano da arquidiocese, a partir de sua fundação, até dias recentes da atualidade, sem cair na monotonia, em momento algum.

Consegue o Cônego Trindade tirar do cotidiano, aparentemente monótono, da história da arquidiocese de Mariana, preciosos dados, vibrantes de vida e de interesse. O grande historiador dá conta de cada minúcia de suas pesquisas: da história dos badalos, dos pequenos escândalos, aos mais importantes feitos dos prelados marianenses. Livro obrigatório nas estantes de quem quer que se interesse pela história de Minas, o Cônego Trindade ombreia-se, com esse trabalho, a nossos grandes historiadores, como João Camilo de Oliveira Torres, o maior de todos.
Nascido para a pesquisa histórica, Trindade brindou-nos também com São Francisco de Assis de Ouro Preto, em que não se limita à burocrática citação das obras da construção do templo, da organização e de outros dados, embora o tenha feito primorosamente. Ele vai muito além: o seu argumento, para provar que o projeto da igreja de São Francisco de Assis é de autoria do Aleijadinho, foi simples e genial: o vereador de Mariana, Joaquim José da Silva, em um relatório oficial, afirma que a obra monumental fora projetada pelo grande artista e arquiteto Antônio Francisco Lisboa. Pergunta o Cônego Trindade: Como esse vereador iria afirmar e anotar, nos anais da Câmara, como registro de fatos notáveis, um tal fato, se este não correspondesse à verdade? Como ficaria o segundo vereador do senado da Câmara de Mariana com o trono português, e, ainda mais, como ficaria com seus próprios conterrâneos? Deve-se lembrar que o vereador escrevera seu relatório em 1790, obedecendo a uma ordem régia, quando a igreja de São Francisco de Assis ainda não estava, de todo, terminada. Diz mais o inteligente Cônego Trindade: Como ficaria o biógrafo do Aleijadinho, o professor e jornalista Rodrigo Bretas, que fez a mesma afirmação em 1858? Centenas, se não milhares de ouropretanos, marianenses, congonhenses e sabarenses, vivos à época da publicação de Traços Biográficos tinham sido contemporâneos do Aleijadinho. A maioria deles conhecera-o pessoalmente e sabia da verdade sobre as suas obras. Diz, inteligentemente, o Cônego Trindade, que Bretas, superintendente do ensino público, “não iria sacrificar em afirmações infundadas o brilho e prestígio do seu nome”.

Felizmente, foi reconhecida a inteligência superior, a genialidade, do Cônego Raimundo Trindade: ainda jovem, a 31 de agosto de 1917, foi nomeado Cônego Catedrático do Cabido Metropolitano de Mariana, mesmo ano em que se tornou sócio correspondente da Casa de João Pinheiro. Por provisão de 20 de janeiro de 1924, foi nomeado Diretor do Arquivo Geral da Arquidiocese de Mariana e, em julho do mesmo ano, Diretor do Colégio Arquidiocesano de Mariana. A 25 de julho de 1944 foi nomeado pelo presidente Getúlio Vargas diretor do Museu da Inconfidência, de Ouro Preto. Tomou posse do cargo em solenidade presidida por Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde, à época. Desde então, passou a residir em Ouro Preto, tendo sido, por esse motivo, dispensado pela Santa Sé, da residência canônica.

O Cônego Raimundo Otávio da Trindade exerceu muitas outras atividades, como as de vigário de várias paróquias, de professor e até de rádio-amador, aliás, o primeiro padre no Brasil a dedicar-se a essa atividade.

Não é necessário alongar-me sobre a figura magna do patrono da Cadeira 54, cujos traços biográficos são sobejamente conhecidos dos insignes consócios do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, pois o Cônego Trindade já foi motivo de primorosas abordagens. Quando se deram as comemorações do centenário de seu nascimento, em 1983, foi alvo das homenagens mais justas e expressivas, quer do poder público, com destaque para as homenagens prestadas pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, quer pela Arquidiocese de Mariana e por seus amigos e admiradores, como as do deputado Pedro Maciel Vidigal, do cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho e do Monsenhor Vicente Dilascio.

Cabe ressaltar que o Cônego Trindade teve sua formação Seminário Arquidiocesano de Mariana e foi professor dessa tradicional instituição, sobre a qual faz o seguinte comentário.

“O Seminário de Mariana é o estabelecimento de instrução e educação mais antigo e de melhores créditos no Estado de Minas, e foi no período de mais de meio século o único a beneficiá-lo com a instrução de seus filhos. Ainda quando, posteriormente, outros estabelecimentos surgiram e vieram com ele cooperar para o grau de civilização a que ascendemos, pode afirmar-se, sem pretender deprimir nenhum deles, que outro não houve, não que o excedesse, sequer que se lhe pusesse a par, em serviços de benemerência para com a causa da instrução pública em nossa terra. (Breve Notícia dos Seminários de Mariana, 1951).”